Na noite de quinta-feira, na sala de cinema do Complexo Cinépolis Recoleta, em Buenos Aires, a recordação das declarações históricas do ex-deputado Ulysses Guimarães valorizaram ainda mais a atualidade do Brasil e da Argentina.

De pé diante de mais de cem pessoas na plateia, o embaixador do Brasil Julio Bitelli recordou as falas incisivas do memorável discurso do ‘doutor Ulysses’, como era chamado, ao promulgar a Constituição Federal de 1988. “A sociedade foi Rubens Paiva. Não os fascínoras que o mataram”. Doutor Ulysses (1916-1992) também disse que tinha “ódio e nojo da ditadura”.

No seu discurso, Bitelli agradeceu a equipe do filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, e a jornalista Sylvia Colombo, colunista da Folha de São Paulo, quem teve a ideia da projeção da obra e do debate na Argentina. O público, de professores argentinos de literatura brasileira, acadêmicos, estudantes, historiadores, executivos da área empresarial que liga os dois países, assistiu ao filme em silêncio. E aplaudiu no fim da exibição.

A projeção da obra-prima que deu ao Brasil o primeiro Oscar de filme estrangeiro ocorreu em uma semana marcante para a democracia dos dois países. Na segunda-feira, dia 24, os argentinos recordaram os 49 anos do golpe militar de 1976 no país. A ditadura durou até 1983, quando Raúl Alfonsín (1927-2009) foi eleito pelo voto direto e popular.

Na segunda-feira, uma multidão se concentrou em frente à Casa Rosada, sede da Presidência argentina, para dizer “Nunca Mais” – frase erguida também pelos jovens que formaram colunas que saíram a pé da ex-ESMA (tenebroso centro de tortura da ditadura) até à Praça de Maio. Foi um ato no Dia Nacional da Memória pela Verdade e a Justiça que também se tornou um grito de repúdio dos presentes ao governo Milei.

Pesquisas de opinião indicam que Milei conta com cerca de 40% de apoio popular. Ele foi eleito com quase 56% dos votos. Sua imagem negativa, porém subiu após o escândalo da criptomoeda Libra. Neste ano, já foram realizadas quatro manifestações contra o presidente. A primeira em janeiro contra suas declarações realizadas no Fórum Econômico de Davos associando homossexuais com a pedofilia. As outras foram em defesa das demandas dos aposentados e a mais recente, na segunda-feira, contra a ditadura e pela democracia.

Numa conversa telefônica com Andrei Román, da Atlas Intel, ele contou que o cenário para Milei mudou após a criptomoeda e que seu respaldo depende, em grande medida, da saúde da economia e dos resultados das suas medidas econômicas. Román também observou que não há para o eleitorado, no entanto, um líder visível e atraente na oposição.

Ao final da projeção de “Ainda estou aqui”, foi exibido um vídeo do jurista Luis Moreno Ocampo, que integrou o julgamento dos ditadores militares da Argentina. “Os jovens brasileiros que nasceram há 20, 30 anos não sabem o que aconteceu e o filme mostra a eles o que ocorreu. É o milagre do cinema. O diretor do filme (Walter Salles) presenteia ao Brasil e ao mundo a possibilidade de entender o que aconteceu. E em um momento crucial para o Brasil onde, ao mesmo tempo, em que se discutia se o ex-presidente Bolsonaro deveria ser investigado ou não pelos conflitos do dia oito de janeiro”, disse.

Nesta semana, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o ex-presidente Jair Bolsonaro e sete aliados, incluindo três generais, estejam no banco dos réus. É a primeira vez que generais são julgados pela justiça civil. O fato ocorreu poucos dias após a comemoração dos 40 anos do retorno da democracia – dia 15 de março de 1985 – no Brasil. O filme argentino “1985”, com o ator Ricardo Darín, aborda os desafios do processo e do julgamento civil contra os ditadores militares argentinos em 1985.

Em seus comentários, após a exibição do filme “Ainda estou aqui”, o jornalista Ariel Palacios, correspondente da Globo News na Argentina, recordou, com riqueza de detalhes, a história das ditaduras nos países do Cone Sul. Da plateia, os comentários sobre aqueles anos tenebrosos valorizaram ainda mais as falas inesquecíveis de Ulysses Guimarães e de Eunice Paiva. Quando perguntada se o passado não deveria ser deixado para trás, ela respondeu que esquecer seria permitir a reedição dos fatos repudiáveis e da impunidade.

O livro de Marcelo Rubens Paiva, as incríveis interpretações de Fernanda Torres, de Selton Mello e de Fernanda Montenegro e as letras e músicas de Erasmo Carlos (“É preciso dar um jeito, meu amigo”) e de Juca Chaves (“Take me back to Piauí”) e a obra-prima “Ainda estou aqui” como um todo alertam sobre o passado e projetam o permanente ensinamento sobre o valor da democracia e do merecido “nojo” contra as ditaduras.



Fuente Clarin.com

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